“Nomes são gaiolas”, é o que diz Rubem Alves nessa crônica sobre a
função dos nomes - 22 jul, 2015
Meu amigo Amilcar Herrera é um homem sábio. Isso é surpreendente,
considerando-se que ele é um cientista. O fato é que ciência e sabedoria são
coisas muito diferentes. Ciência é conhecimento do mundo. Sabedoria é
conhecimento da vida. A exuberância do conhecimento científico vai,
frequentemente, lado a lado com uma total penúria de sabedoria. Nisso o
conhecimento científico pode ficar parecido com aquela praga conhecida pelo
nome de “erva-de-passarinho”, uma parasita terrível que se aloja nos troncos
das árvores e, à medida que cresce, a árvore morre. Estou cansado de ver Ph.Ds
tolos.
Uma das características das palavras do sábio é que elas sempre nos
surpreendem. Guimarães Rosa cita um intrigante aforismo que diz assim: “Aquilo
que vou saber sem saber eu já sabia”. Mas não sabia. Sabia sem palavras. Aí o
sábio abre a boca e a gente se surpreende por ouvir dito aquilo que já morava
adormecido no silêncio do corpo. O
Amílcar falou e eu me surpreendi. Ele me disse:
Rubem, eu tenho um sonho. Sonho que um dia qualquer eu vou acordar e vou
ter esquecido o meu nome. Quem sou eu? – eu vou me perguntar. E eu não saberei
o que responder. Não terei memória do meu nome. O ruim é quando a gente esquece
o nome, mas os outros continuam a saber quem somos. Aí os psiquiatras dizem que
tivemos um ataque de amnésia. E tratam de nos curar, de fazer-nos lembrar o nome
para que saibamos quem somos. O nome é uma gaiola onde o que somo mora.
Declaram-nos curados quando o nosso ser aparece de novo dentro da gente. Aí
eles teriam perdido a memória da gaiola que prendia o nosso ser. E o nosso ser
transformaria em pássaro e voaria livre por espaços por onde nunca havia voado.
O nome é uma prisão.
É preciso confessar que não foram essas, precisamente, as palavras do
Amílcar. Faz muito tempo que tivemos essa conversa. Mas foram essas as
associações que sua declaração provocou em mim. Eisso que ele falou, coisa na
qual eu nunca havia pensado, foi para mim uma revelação. Vi repentinamente, o
que eu nunca tinha visto. É isso mesmo. Nomes são gaiolas. Neles se guardam as
coisas que fizemos. Existem até os currículos, gaiolas que já fizemos. Aí, com
base naquilo que já fizemos, as pessoas e nós mesmos imaginamos aquilo que se
pode esperar da gente.
Peirce, lógico respeitável, no seu ensaio sobre “Como tornar claras as
nossas idéias”, oferece-nos a seguinte fórmula para nos ajudar a ter clareza
sobre a natureza de um objeto qualquer: “Considere quais os efeitos práticos
que imaginamos que esse objeto possa ter. Então, a soma desses efeitos é o que
é o nosso conceito desse objeto”. Exemplificando: o objeto “galinha” – que
efeitos práticos, em nosso pensamento, são invocados por esse nome? Respondo:
cacarejo, ninho, ovo, cocô, ciscar na terra, molho pardo, canja etc. Esses
efeitos práticos, somados, são aquilo que, na minha cabeça, está contido dentro
do nome “galinha”. Aí eu pergunto: “Como foi que cheguei a associar esses
efeitos práticos ao nome galinha?”. Resposta: “Pela minha experiência passada
com essa entidade penosa cacarejante”.O nome, assim, é um saco onde se deposita
a experiência passada. E é baseado nessa experiência que se conclui sobre o que
esperar no futuro. Ninguém vai imaginar que uma galinha vai contar como
pintassilgo, nem que vai botar ovos azuis, nem que vai fazer ninhos parecidos
com os dos beija-flores. Galinha e galinha, para todo o sempre. Está dito no
nome.
Isso que foi dito sobre a galinha vale para tudo. Para as pessoas
também. Quando o meu nome é pronunciado, eu sou imediatamente informado do que
fiz no passado. E, ao ser informado, pelo som enfeitiçador do meu nome, daquilo
que se fiz no passado, sou também informado do meu ser e daquilo que se espera
de mim no futuro. O nome, assim, obriga-me a ser de um jeito que se espera. O
nome contém o programa do meu ser.
O Amilcar sabia das coisas. Imagino que aquela confissão – “Sonho que,
um dia qualquer, eu vou acordar e vou ter esquecido o meu nome…” -, imagino que
essa confissão nasceu de uma dor, a mesma dor que Álvaro de Campos colocou num
verso: “Sou o intervalo entre o que desejo ser e o que os outros me fizeram”.
Ele acorda numa manhã, com vontade sei lá de quê ´há pessoas cuja presença numa
feira ou numa igreja é impensável, não combina; o lindo cirurgião de roupa
branca, ele é impensável numa feira, comprando cebolas, de bermudas e
sandálias, e também não se pode imaginar que o professor de economia ateu
confesso ponha-se a chamar por Santa Bárbara no meio da tempestade de raios (sobre
as invocações a Santa bárbara vale ser o Alberto Caeiro). Pois imagino que o
Amilcar acordou com um desejo estranho qualquer, não previsto no seu nome,
desejo que nunca tivera, ou que sempre tivera, mas cujo reconhecimento fora
sempre proibido pelo seu nome. Mas logo veio a interdição: “Essa ação não é
permitida pelo nome Amílcar Herrera. Essa ação não está prevista no programa
Amílcar Herrera”.
Compreendi, então, o curioso costume de um povo primitivo que sempre dá
dois nomes às pessoas. O primeiro deles é o nome igual ao nosso, anunciado,
falado, escrito, conhecido, a gente grita o nome e a pessoa responde, o nome é
falado e todo mundo sabe sobe quem estamos falando. O outro nome só a própria
pessoa sabe. O primeiro nome é nome falso, apenas para efeitos práticos, uma
mentira socialmente necessária. O outro nome, secreto, é o lugar onde mora o
meu ser verdadeiro, que é muito diferente do outro. Assim, por meio desse
artifício, todo mundo sabe que ninguém está preso dentro de uma gaiola de sons,
que não se pode exigir que a pessoa seja, no futuro, aquilo que foi guardado no
saco do nome, no passado. Cada pessoa tem, dentro de se, um segredo, um
mistério. Cada burrinho pedrês tem, dentro de si, um cavalo selvagem. Cada pato
doméstico te, dentro de si, um ganso selvagem. Cada velho tem, dentro de si,
uma criança que deseja brincar.
Acho que era isso que o Amílcar estava dizendo:
Se eu esquecer o meu nome e se os outros não exigirem que eu continue a
ser o que sempre fui, então alguma coisa nova poderá nascer da velha: uma fonte
no deserto. Afinal de contas, esta é a suprema promessa do evangelho: que os
velhos nascerão de novo e virarão crianças.
BOA NOITE !!!